Quando o galo cantou na manhã seguinte, Nhá Severina já havia cozinhado um tacho de inhame, retirado do borralho quase uma quarta de batatas assadas, retirado do forno nada mais nada menos que umas quatro travessas de bolo de fubá de melado, escumado a garapa e coado o café para começar a lida da peonada.
A cozinha de Nhá Severina era uma constante mistura de cheiros e gostos. Era desses lugares aonde se chega e achega-se.
Além dos cheiros e sabores tinha também a parte sonora que além dela que já era uma sinfonia o radinho de pilha ligado no programo do Zé Bétio. Era com o Zé Bétio que Nhá Severina acordava Manuelzinho. Tão logo ela ouvia o mesmo dizer “acorda Guerino, joga água nele, joga água nele” lá ia ela rumo ao quarto de Manuelzinho fazendo algazarra e repetindo a o mesmo. Voltava de lá sorrindo aquele sorriso largo, de canto a canto, e doce de preta velha que fizera estripulia mas com a missão cumprida de por para fora o rapazola.
A partir daí a música invadia o ambiente e a partir dali as vozes de Lourenço e Lourival, Cascatinha e Inhana, Tião Carreiro, Trio Parada Dura adentravam a cozinha de Nhá Severina tronando-a mais alegre era ao som de vozes como estas que a mesma preparava amorosamente o café da manhã para servir à peonada.
Enquanto ela preparava o café no pasto o menino Joaquim corria aboiando as vacas para que os vaqueiros começassem a tirar o leite.
Ele descia da encosta na divisa dos ipês com os mulungus tocando nada mais nada menos que uma 100 vacas leiteiras. Àquela hora da manhã, o menino, de pés descalços e pernas de fora, tinha os dedos cortados pela tiririca cortante, navalha de macaco, e seguido o frio, sereno e poeira o pé era um ungüento de sangue, mel de meloso, poeira e orvalho caído durante a fria madrugada de agosto.
Lá embaixo no engenho o mel da cana escorria entre as bicas enchendo tachas e o fogo do bagaço seco crepitava nas bundas das mesmas aquecendo a garapa. Correndo, sempre atrasado, Manuelzinho vinha lá com as embiras de carrapicho para colocar nas taças para escumar a garapa.
Enquanto fervia as embiras faziam com que a sujeira da cana se juntasse numa escuma que era escumada por enormes escumadeiras durante o processo de fervura. Era assim que fulano fazia para limpara a garapa e dar melado clarinho.
Lá de cima Nhá Severina gritava Manuelzinho.
- Manezim, ô manezim, vem leva o café dos homi.
Tão logo o mesmo chegava ela já começava com as recomendações:]
- Vê lá se não vai caí e derramá o café, afinar de contas ocê é mei estorvado e trapaiado das ideia, e vê e num dirruba as coisa de cumê. Cuidado com as xícra que de tanto atê ta tudo discascada. Curpa sua que num tem tenção cum nada, ô minino. Quando vortá traiz uma vazia de melado pra mim pru mode o patrão cume inhame cum melado. Ande, dipressa.
Saia resmungando rumo ao engenho e antes mesmo de chegar no meio do caminho já estava cantarolando ou de olho cumprido em Salviano.
Tão logo chegava com o melado novas ordens.
- Agora vai tratá dos poico. Vê se alembra que a poica que ta nos dia de criá tem que dá pôco trato, o fubá com soro e banana cozida é pros capado, e o mio e bagaço prus poico que num foi capado ainda, no caminho cê passa no paió e trata das galinha pra mode deas num i pro chiqueiro cumê o cumê dus poico.
E resmungava de novo.
- Tá Severina, veia chata.
- E ela de lá de dentro gritava ainda, eu tenho qui ripiti tudo pro mode da sua lerdeza o bicho lerdo.
Enquanto isso os carros-de-boi trafegam de um canto a outro da fazenda transportando a cana que sustentava aquela fazenda quer com a rapadura ou a cachaça.
Cachaça boa era a da Mulungu. Ninguém na região fabricava cachaça tão boa como na Fazenda do Coronel Getúlio.
Era ali, por volta das seis horas quando o coronel chegou à cozinha para tomar o seu café.
Nhá Severina agora estava as voltas com o menino Joaquim gritando para que ele fosse molhar a horta e fazendo muitas recomendações.
-Bom dia, Severina, cadê meu café. Perguntou o coronel em seu tom de sempre, de quem toma café amargoso e não gosta.
- Bom dia, coroné, continua azedo como sempre! Mais pra mim cara feia é fome. Come bastante que passa esse não passá e só engoli o orgulho, selá o cavalo e passar a porteira pro lado do ipês que passa. Respondeu, Nhá Severina emendando a conversa.
- Não tem jeito cocê. Cê ta cada dia mais atrevida, enxerida, e metendo a colher onde não é chamada. Cuida da sua cozinha que da minha vida cuido eu. E dali saiu resmungando e esbravejando contra a vida, não com Nhá Severina que estava sempre com razão e ninguém ali tinha muita coragem de discutir com ela.
Era o coronel de saias, mas doce.
Lá no terreiro, Ana varria. Na fornalha grande Cassiana fazia beijus de milho para colocar na farinha de milho depois de torrada. Em volta dela um bando de crianças aguardando para que ela distribuísse os pedaços de beijus ainda quentes.
Chica corria de um lado para outro ora, atiçando o fogo, ora misturando a farinha para que tudo estivesse pronto à hora do almoço.
Era assim na fazenda de Coronel Getúlio. Um corre-corre comandado pelas quatro irmãs. Negras, altivas, doces e braços de ferro do coronel.
Ana, a mais franzina de todas, também era a mais sonhadora. Sonhava como a sinhá, não sonhava o lugar da mesma, mas os sonhos dela.
Sua lida era toda feita com música nos lábios e um sorriso de quem espera a felicidade. Tinha o sorriso à frente até mesmo por ter sua arcada dentaria mais para fora, mas um lindo sorriso.
A negra Cassiana e Valter não só era um casal, era a alegria de todos. Dos três filhos, dos netos e da criançada.
Ela, contadeira de histórias infantis, assim como a irmã, porém não de assombração, aquelas do foram felizes para sempre. Vivia rodeada de crianças e fazia festa para elas o dia todo.
Ele, adorava pegar as crianças no colo, aos meninos, dizia que iria capá-los, ou pedia uma cheiradinha de pó.
Quando no colo embalava-os ao som do serra-serra, ou pegava com os dois dedos entre o joelho para verificar se seriam peões. Aos coceguentos dizia que não teriam futuro ou que os mesmos namoravam na igreja.
Já, Chica, a maior de todas parecia uma menina grande. Adorava brincar de assustar as pessoas. Trabalhar como ela, homem nenhum. Da Fazenda para casa. Ao chegar juntava toda a família e ia ainda para a roça capinar. Colhia em suas roças oitenta alqueires de milho, vinte de feijão e sem contar as tulhas de amendoim que ela enchia. No terreiro da casa de Chica tinha tanta galinha quanto na fazenda de coronel Getúlio. Era galinha, pato, ganso, peru, galinha d’angola. Em sua horta, imensa colhia alho para a despesa da casa, para vender para a fazenda e para os vizinhos.
Já o marido, Seu Joãozinho, apelido dado devido à pequena estatura, apesar de trabalhador tinha um fraco para a bebida. Não saía da venda do seu Geraldo.
A vida na fazenda corria normal quando um carro cruzou a divisa da fazenda. A criançada correu para a frente da fazenda, Manuelzinho correu junto e aqueles que não o fizeram ficaram de orelha em pé aguardando que um mais estabanado gritasse ou falasse mais alto quem chegou.
O carro parou em frente a entrada da varanda e de lá uma morena de um metro e setenta e cinco cabelos cacheados tocando a cintura, a tez morena clara,olhos e bocas grandes esboçavam um sorriso de menina travessa que fizera estripulia e que matava a saudade ao mesmo tempo.
Do alto da varanda, Nhá Severina bradou em alto som, num misto de alegria e apreensão.
- Minha menina, há quanto tempo, o quê que ocê tá fazeno aqui? Que saudade. Quantos ano, num vejo ocê minha doce Adélia.
- Deu saudades, Severina! Vim ver vocês e dessa vez vim pra ficar.
- Como assim fifi, fifi, ficar!? Exclamou perguntando com os olhos esbugalhados como quem viu assombração.
- Sim Severina, porque o espanto?
- Ele já sabe? Perguntou Nhá Severina.
- Não. Cadê ele.
- Tá na lida.
- Então peça alguém para retirar minhas malas e colocar no quarto de hóspedes para mim.
- Tá, mais isso vai dá confusão!
Nhá Severina gritou Manuelzinho, mas dessa vez quando ela disse Ma eleja estava junto dela, tamanha era a curiosidade dele em saber quem era a moça bonita.
- Anda menino deixa de sê curioso e vai colocá as mala de D. Adélia no quarto de hóspede. Ralhou Nhá Severina.
Severina lançou um olhar para Adélia que se encaminhava para o interior da casa, e um arrepio desce-lhe a espinha até os pés, o coração apertou e em volta de sua doce menina Severina viu um halo negro e pressentiu que dali para frente, tempestades fortes rondariam aquela casa.
Na cozinha Severina colocou a mesa de café para Adélia. Tinha brevidade, rosca de fermento, biscoito de goma, rosquinha de nata, biscoitinho recheado de goiabada, biscoito de araruta, bolacha, broa de fubá, bolo e tudo mais de delicioso que só Nhá Severina sabe fazer. Enquanto comia, Adélia era só elogios aos quitutes de Nhá Severina.
- Que Saudades, esse sabor tem gosto de infância, da minha infância. Até hoje me pergunto o que aconteceu, por quê? Mas o gosto é o mesmo e levantava e abraçava Nhá Severina e fazia festa para a negra que apesar de estar gostando sabia que isso não ia ser muito bom.
Assim que terminou de comer, Adélia foi para a sala, ligou o som, tirou da bolsa um LP que acabara de comprar de uma dupla sertaneja nova, colocou no som, aumentou o volume ao máximo deitou no sofá e começou a cantar junto com a dupla sertaneja.
Eu não vou negar
Que sou louco por você,
"Tô" maluco pra te ver;
Eu não vou negar.
Que sou louco por você,
"Tô" maluco pra te ver;
Eu não vou negar.
Eu não vou negar,
Sem você tudo é saudade,
Você traz felicidade;
Eu não vou negar.
Sem você tudo é saudade,
Você traz felicidade;
Eu não vou negar.
Eu não vou negar,
Você é meu doce mel,
Meu pedacinho de céu;
Eu não vou negar.
Você é meu doce mel,
Meu pedacinho de céu;
Eu não vou negar.
Você é
Minha doce amada, minha alegria,
Meu conto de fadas, minha fantasia;
A paz que eu preciso pra sobreviver.
Minha doce amada, minha alegria,
Meu conto de fadas, minha fantasia;
A paz que eu preciso pra sobreviver.
Eu sou o seu apaixonado
De alma transparente,
Um louco alucinado,
Meio inconsequente,
Um caso complicado de se entender.
De alma transparente,
Um louco alucinado,
Meio inconsequente,
Um caso complicado de se entender.
É o Amor,
Que mexe com minha cabeça
E me deixa assim;
Que faz eu pensar em você
E esquecer de mim;
Que faz eu esquecer
Que a vida é feita pra viver.
Que mexe com minha cabeça
E me deixa assim;
Que faz eu pensar em você
E esquecer de mim;
Que faz eu esquecer
Que a vida é feita pra viver.
É o Amor,
Que veio como um tiro certo
No meu coração;
Que derrubou a base forte
Da minha paixão
E fez eu entender que a vida
É nada sem você.
Que veio como um tiro certo
No meu coração;
Que derrubou a base forte
Da minha paixão
E fez eu entender que a vida
É nada sem você.
Eu não vou negar,
Você é meu doce mel,
Meu pedacinho de céu;
Eu não vou negar.
Você é meu doce mel,
Meu pedacinho de céu;
Eu não vou negar.
Você é
Minha doce amada, minha alegria,
Meu conto de fadas, minha fantasia;
A paz que eu preciso pra sobreviver.
Minha doce amada, minha alegria,
Meu conto de fadas, minha fantasia;
A paz que eu preciso pra sobreviver.
Eu sou o seu apaixonado
De alma transparente,
Um louco alucinado,
Meio inconsequente;
Um caso complicado de se entender.
De alma transparente,
Um louco alucinado,
Meio inconsequente;
Um caso complicado de se entender.
É o Amor,
Que mexe com minha cabeça
E me deixa assim;
Que faz eu pensar em você
E esquecer de mim;
Que faz eu esquecer
Que a vida é feita pra viver.
Que mexe com minha cabeça
E me deixa assim;
Que faz eu pensar em você
E esquecer de mim;
Que faz eu esquecer
Que a vida é feita pra viver.
É o Amor,
Que veio como um tiro certo
No meu coração;
Que derrubou a base forte
Da minha paixão...
Que veio como um tiro certo
No meu coração;
Que derrubou a base forte
Da minha paixão...
O coronel entra na as sala aos berros.
- Que é isso? Que bagunça é essa na minha casa. Severina, Severina...
Só foi interrompido pelo sorriso escancarado a sua frente. Cambaleou, suou frio, e balbuciou. Você!? Era ela? Seria ela? Perguntava-se.
- Sim papai, sou eu.
- Por um momento pensei que fosse... e apontando para o quadro na parede calou-se.
Ela correu para os braços do pai e disse que agora iria morar com ele que estava decidido.
Ele acenou consentindo e saiu abraçado à filha com um sorriso no rosto um ar de jovialidade que há muito não se via.